Carta...
Vi esta carta num outro blog....não resisti a colocar no teu blog, porque reflecte o que sinto.
Que o mundo com a tua presença se torne mais bonito....que sejas muito feliz e faças os outros à tua volta felizes...até agora, missão cumprida :)
"Carta para a minha filha recém-nascida por José Eduardo Agualusa
Domingo, 08 de Agosto de 2004,
Quando nasceste, e eu cortei o cordão que te unia à tua mãe, murmurando baixinho, eu te inauguro, minha filha, bem-vinda à vida, eu sabia que havia homens, lá fora, a assassinar outros homens, ou a prepararem-se para assassinar outros homens; havia homens ocupados a adestrar adolescentes na arte da guerra (é como lhe chamam); havia homens concentrados na difícil tarefa de torturar prisioneiros, e outros tantos engendrando máquinas destinadas a mutilar, a ferir e a matar inocentes. "Acho uma irresponsabilidade ter filhos neste tempo", disse-me um amigo, numa tarde de sol resplandecente, e eu concordei, distraído, ou talvez porque fizesse muito calor, e me seja sempre difícil encontrar argumentos quando a luz cai em excesso. Certas coisas, como se sabe, vêem-se melhor na escuridão. Agora, no silêncio da noite, não me custa reconhecer que sim, que vivemos tempos cruéis – mas não o foram sempre? Existem hoje, aliás, mais territórios a salvo da crueldade, e, sobretudo, da crueldade enquanto sistema, do que, e nem preciso recuar séculos, no ano em que a minha mãe nasceu. A história da humanidade é uma história da crueldade; mas é também uma história contra a crueldade. Houve um tempo em que havia no mundo mais torturadores do que poetas. Hoje, tenho a certeza, são mais os poetas do que os torturadores, embora – também sei disso – haja quem acumule funções. Gente com múltiplas aptidões. Conheci alguns maus poetas que enquanto escreviam os seus maus poemas se revelaram bons torturadores. Temos cometido crimes que nenhum verso redime. Mas – caramba! – também acrescentámos beleza ao mundo. Penso em tudo aquilo que te quero mostrar, em todos os lugares que quero revisitar e descobrir contigo. Coisas simples, como o fulgor das tempestades, lá, no planalto, em meio ao verde exultante do capim. A curva de um ribeiro onde fui feliz na minha infância. Os ovos moles de Aveiro. Algumas canções de Lhasa. Abdullah Ibrahim tocando (e cantando) "Ishmael". Uma buganvília, velha amiga minha, muito bela, que na primavera é a primeira a encher de cor o Jardim Tropical, em Lisboa. O pôr-do-sol no Arpoador. O Museu Picasso, em Barcelona. O sorriso do teu irmão. O mar, um leve lago azul-anil, de Angra dos Reis. Saltar de asa-delta da Pedra Bonita. Ah!, e haveremos juntos de subir o Quanza, até Massangano, e de descer o Nilo, desde Ondurman (será possível?) até ao Cairo, e o imenso Amazonas, desde Iquitos a Belém do Pará. Havemos de lançar papagaios ao vento e, mais tarde, talvez me possas ensinar a dançar os ritmos que então estiverem na moda. Só uma mulher que me ame muito me conseguirá ensinar a dançar o que quer que seja. Ao contrário do que dizia o meu amigo, naquela tarde de sol, mas sem esperança, ter filhos hoje é uma demonstração de responsabilidade. No instante em que te dei as boas vindas, às 17 horas e 17 minutos de um domingo angolano, e segurei a tesoura e cortei o cordão que te unia à mãe, foi também a mim que inaugurei. Um filho é sempre um recomeço. Um filho é a maneira que temos de reiniciar o mundo. Sofrerás, eu sei, com a crueldade e a injustiça dos homens. Em certas manhãs acordarás sem ânimo. Talvez então te questiones sobre os motivos porque te trouxemos aqui. Trouxemos-te (é o que sinto) para que nos ajudes a sermos melhores. Trouxemos-te porque te queremos melhor do que nós. Ver-te dormir, e como tu dormes minha filha, com que talento!, repousa-me (e regera-me) mais do que o meu próprio sono. Anseio por ouvir a tua primeira gargalhada. Sei que isso me fará ainda melhor. Não conheço som mais iluminado do que a gargalhada de um bebé. Bem vinda, pois, minha filha. Choveu há pouco. O céu está limpo. O mundo está agora a começar. "
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